Em favelas do Rio, 42% sofrem preconceito por uso de cannabis medicinal

Estudo com moradores mostra que 32% recebem doações de canabidiol para tratar TEA, epilepsia, ansiedade, depressão e dores crônicas

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Apesar de ter se popularizado nos últimos anos, ainda há muito estigma quando o assunto é o uso terapêutico da cannabis. A pesquisa inédita Plantando saúde e reparação: o uso terapêutico da maconha nas favelas do Rio de Janeiro aponta que 42% das pessoas ouvidas afirmaram já ter sofrido preconceito por fazer uso ou por tentar acessar a maconha para fins terapêuticos.

Quem faz uso do cigarro de maconha sofre uma violência ainda maior: 78,9% das pessoas disseram já ter sofrido algum tipo de preconceito. Os usuários do óleo de maconha são os que menos sofrem repressão, apenas 31,7% informam ter sido submetidos a algum tipo de preconceito.

O levantamento foi realizado em dezembro de 2022 com 108 moradores de favelas cariocas – especialmente Cidade de Deus e os Complexos da Maré e do Alemão. A Movimentos, organização de jovens favelados e periféricos que usa a educação, a comunicação e a arte para combater o racismo, as agressões e as desigualdades nas favelas, lança o estudo neste Dia Internacional de Combate às Drogas (26 de junho).

A pesquisa traz o perfil de quem faz uso terapêutico da maconha e de quem deseja acessar os benefícios terapêuticos da substância. Com dados que dão rosto a esses usuários, o estudo identificou as principais questões de saúde tratadas com a maconha, as formas de uso, o exaustivo caminho que moradores de favelas e periferias precisam percorrer para ter acesso à substância e as dificuldades que se apresentam a essas pessoas.

O perfil dos respondentes é de pessoas negras (73,3%), com renda mensal de menos de um salário mínimo (60%) e que recebem algum tipo de benefício social do governo (58%). Sobre a identificação religiosa dos que participaram da pesquisa, 32,38% afirmam não ter uma prática religiosa, mas não declaram ser ateus.

Chama a atenção o percentual de evangélicos (27,62%) e de católicos (23,81%), uma vez que muitas religiões têm uma visão moralista sobre o tema e condenam o uso de qualquer tipo de substância psicoativa. De forma geral, a maioria dos respondentes é composta por pais e mães de pessoas que fazem ou desejam fazer o uso (65,7%), ou seja, são sujeitos que têm ou buscam acesso à substância para manter tratamento de saúde de seus filhos ou familiares.

Saiba mais sobre os resultados da pesquisa inédita

Condições de saúde dos usuários – Sobre as condições de saúde tratadas com a maconha e seus derivados, as mais mencionadas foram o transtorno do espectro autista (52,2%), seguido pela epilepsia (12,39%), sintomas de ansiedade (12,39%), sintomas de depressão (7%) e dores (5%).

Formas de uso terapêutico da maconha –  Dentre os moradores de favela que fazem uso terapêutico da maconha e participaram do estudo, a maioria o faz através do óleo (60%) e do cigarro/“baseado” (18%).

Formas como conheceram o uso terapêutico da maconha – A maioria afirmou ter tomado conhecimento através de parentes, amigos ou vizinhos (40%), demonstrando que o tema tem se tornado cada vez mais popular. Em seguida, as respostas foram através da internet (32%), por indicação médica (13%), através de organização não-governamental (8%) e através da televisão (3%).

Gastos mensais e investimento financeiro no uso terapêutico da maconha – A maioria dos respondentes, ou o equivalente a 68%, afirmou ter algum gasto com a substânciaDentre aqueles que têm alguma despesa, 22% afirmaram gastar de 201 a 300 reais por mês; 17%, de 101 a 200 reais; 12%, até 100 reais; 8%, de 301 a 400 reais; 5% entre 401 a 800 reais. Poucos (4%) gastam 1 mil reais ou mais por mês. Outros 32% afirmaram não ter gastos e a explicação é que muitos respondentes são assistidos por organizações não governamentais que atuam em favelas e periferias e conseguem substâncias derivadas da maconha por meio

Óleo de maconha – Dentre as pessoas que declararam fazer uso do óleo, a maioria (84%) só experimentou um tipo do composto. O canabinoide mais mencionado foi o canabidiol (69%), seguido pelo THC (15%). Pouco mais da metade (52%) maioria dos que fazem uso do óleo no contexto das favelas do Rio de Janeiro conseguiu o produto por meio de doações. Organizações não governamentais diversas atuam ativamente nestes territórios para viabilizar a doação dos produtos e facilitar o processo burocrático de acesso à substância.

Insegurança no uso nas favelas – Entre os que guardam em casa maconha ou substâncias derivadas, 55,2% dizem sentirem-se seguros. Mas para 38,1% nem o uso restrito ao ambiente doméstico é capaz de tranquilizá-los. Alguns participantes afirmaram que usar o óleo da maconha – e não outra forma de uso – e ter prescrição médica e/ou autorização judicial para tal são fatores que os fazem sentir mais seguros. Outros, no entanto, afirmaram ter medo mesmo em posse dos documentos que autorizam a medicação.

Para ler o relatório completo, acesse o site da Movimentos.

Crueldade na criminalização de pacientes que usam maconha medicinal

Jéssica Souto, coordenadora da pesquisa, aponta para a crueldade da criminalização dessas famílias. “Enquanto pessoas brancas ricas e de classe média garantem uma melhor qualidade de vida para os seus filhos com acompanhamento médico, amparo judicial e informação, famílias pretas e moradoras de favela enfrentam diversas barreiras para conseguir essa substância. Essas famílias convivem constantemente com o medo da criminalização, violência e repressão associadas ao uso. Nem mesmo quando recebem prescrição médica as pessoas estão a salvo da violência estatal”, reforça.

Aristênio Gomes, um dos pesquisadores do estudo, chama a atenção para a urgência de produzir dados que subsidiem políticas públicas sobre o tema.

“O uso terapêutico da maconha já é realidade nas favelas. Muitas pessoas têm buscado o alívio de sintomas para várias doenças. Há diversos estudos que atestam o potencial terapêutico dessa substância e seus derivados, mas ainda assim,na favela, as pessoas dependem principalmente da ajuda de organizações não governamentais e doações para ter acesso à saúde. Garantir esse acesso é dever do Estado. Essa pesquisa vem para trazer um diagnóstico dessa realidade e mostrar que precisamos de políticas públicas que garantam que pessoas em sofrimento consigam aliviar suas dores de maneira segura e gratuita”.

Ricardo Fernandes, um dos pesquisadores, revela que, mesmo com o preconceito, moradores de favela querem desestigmatizar o uso da maconha. “Em geral, as pessoas afirmaram não ter vergonha de falar que fazem uso terapêutico da maconha. Muitas acreditam que, ao tocarem no assunto, ajudam a compartilhar informações e combater o preconceito relacionado à substância. Falar abertamente sobre o uso terapêutico e as dificuldades que enfrentam para ter acesso a ele é uma forma de quebrar barreiras”.

Colhendo reparação: caminhos para avanços regulatórios do uso terapêutico

O relatório Plantando saúde e reparação: o uso terapêutico da maconha nas favelas do Rio de Janeirodestaca duas proposições em discussão no Congresso que podem contribuir para o avanço da pauta da regulação no país. São elas:

  • PL 399/2015, em discussão na Câmara dos Deputados. O projeto de lei propõe viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta cannabis sativa em sua formulação;
  • PL 5295/2019, em tramitação no Senado Federal. O projeto submete à vigilância sanitária a produção, a distribuição e a comercialização da maconha medicinal e determina sua regulamentação.

E no poder judiciário, destaca-se o retorno da tramitação do Recurso Extraordinário 635.659 no Supremo Tribunal Federal (STF), depois de oito anos paralisado. O documento discute a descriminalização da posse de drogas para uso pessoal.

Nas Assembleias Legislativas estaduais de 24 estados brasileiros, há leis ou projetos de leis em tramitação para acesso à cannabis pelo Sistema Único de Saúde (SUS). São Paulo foi o Estado mais recente a instituir uma política estadual de fornecimento gratuito de medicamentos à base de canabidiol.

Sem reparação, não há regulação

O relatório aponta, ainda, a urgência de se pensar formas de reparar danos históricos das violações de direitos a populações marginalizadas por sua raça, cor ou etnia. A chamada “reparação racial” seria uma forma de compensar as pessoas prejudicadas por discriminações e violências a que foram estruturalmente submetidas no passado. Um exemplo desse tipo de medida são as cotas em universidades públicas.

No contexto da política de drogas, diversos países têm discutido e aplicado políticas reparatórias para as parcelas da população mais afetadas pela forma que se dá a guerra às drogas.

Movimentos defende uma nova política de drogas que contemple medidas de reparação para a juventude favelada, como o acesso à capacitação profissional de pessoas egressas do sistema prisional, a destinação de vagas de emprego a essa parcela da população, e ainda a inclusão dos jovens no mercado legal da maconha, se assim desejarem. A organização acredita que o debate sobre o uso terapêutico da maconha precisa incluir o combate ao racismo, pilar da proibição da planta no Brasil.

Recomendações para avançar no debate sobre a regulação da maconha

A pesquisa traz cinco recomendações para avançar no debate sobre a regulação da maconha, com foco em reparar os danos provocados por décadas de proibicionismo contra aqueles que mais sofrem com a guerra às drogas.

  • Regulamentação do associativismo: proposta de regulamentação das associações que produzem substâncias derivadas da maconha, para que essas organizações não sejam criminalizadas, especialmente em favelas e periferias.
  • Legislação federal que garanta a distribuição de substâncias derivadas da maconha pelo Sistema Único de Saúde: a indefinição encontrada em várias localidades do país faz com que se abram brechas para políticas proibicionistas, e dificultam o acesso dos mais vulneráveis.
  • Fortalecimento de associações canábicas: além de regulamentar as associações, é fundamental garantir que essas organizações forneçam as substâncias ao SUS através de parcerias com o poder público.
  • Fomento a iniciativas canábicas faveladas e periféricas: proposta de parceria do Estado com iniciativas que já possuem expertise e legitimidade nos territórios, por meio de suporte financeiro e estrutura para o atendimento psicossocial, jurídico, orientação e acompanhamento de pacientes.
  • Revisão da RDC 327/2019: atualização da Resolução 327/2019 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que estabelece os critérios para a concessão de autorização sanitária para importação, fabricação, comercialização, entre outros, de produtos derivados de maconha para fins terapêuticos. É necessário flexibilizar as regras sobre a concentração permitida de THC em óleos, ampliar a via de administração de produtos à base de maconha e aumentar a gama de produtos autorizados.

Metodologia da pesquisa

A pesquisa de caráter quantitativo foi realizada através da aplicação de um questionário anônimo online semiestruturado, pela ferramenta Google Forms. As perguntas foram destinadas a moradores de favela que fazem ou querem fazer uso terapêutico da maconha.

A técnica de amostragem utilizada foi a da bola de neve, que consiste no contato com pessoas selecionadas que convidam outras pessoas para também responder as perguntas.

Apesar de se tratar de uma pesquisa quantitativa, algumas perguntas abertas foram inseridas ao final do questionário. O intuito foi compreender um pouco mais da visão de moradoras e moradores de favelas sobre a maconha e as principais dificuldades relacionadas ao uso terapêutico. As respostas destas questões foram usadas ao longo do relatório para ilustrar situações vividas por pessoas e famílias que fazem o uso terapêutico.

O período em que o questionário ficou disponível foi de três semanas, em dezembro de 2022. Ao todo, 108 respostas foram consideradas. As respostas foram reunidas em um banco de dados e, após sua sistematização, foram geradas tabelas e gráficos com os números encontrados e uma planilha com as respostas das perguntas abertas.

Sobre a Movimentos

Formada por jovens moradores de favela do Rio de Janeiro, a Movimentos nasce com o objetivo de inserir a própria população negra e das favelas, mais afetada pela violência policial e guerra às drogas, dentro dos debates sobre política de drogas no Brasil. A iniciativa defende a urgência de uma nova política de drogas para o País e acredita que, dentro da luta pelo fim da guerra do Estado contra a população negra, os favelados devem ser protagonistas.

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